domingo, 30 de março de 2014

Pelo Reencantamento do Mundo

Nunca vivemos uma época com tantas e diversificadas manifestações no Brasil. Foi, no entanto, o apelo de um escritor moçambicano, Mia Couto, que despertou em mim um click. O que realmente necessitamos com urgência neste país e no restante do planeta é um movimento pelo REENCANTAMENTO DO MUNDO. “A vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado”, diz este autor que já está no topo da minha lista de personalidades admiradas.

Se ao menos parássemos para pensar, esvaziando-nos de nossas gloriosas e sofisticadas visões de mundo, sobre a vida e o ser humano, nos maravilharíamos com tamanha complexidade e beleza. Nós somos um verdadeiro milagre da Natureza: organismos inteligentes, capazes de manter seu equilíbrio interno para se manterem vivos. Quando uma mulher engravida, uma infinitude de problemas e dificuldades do organismo desaparecem, como que por mágica, porque o corpo está concentrado em gerar a nova vida que está por vir.



Uma criança vê o mundo com encantamento, mas os adultos vão aos poucos retirando este encantamento porque eles mesmos já foram desencantados em sua infância. Por isso para uma criança uma caixa de papelão é um navio pirata ou o castelo da princesa, enquanto para um adulto ela é apenas uma caixa de papelão. Mas nem todos os adultos perderam esta capacidade de ver. Os poetas, os povos indígenas e muitos artistas são sobreviventes do processo de acinzentar a vida.

Admirados pelo trabalho de seu mestre Michelangelo, ao mostrar sua nova escultura, seus discípulos lhe perguntaram como ele conseguia aquele verdadeiro milagre. Ele respondeu: “o anjo já estava aí, apenas tirei os excessos que estavam sobrando”.

Este olhar está dentro de todos nós e poderia transformar a nossa realidade. Por algum motivo, alguns de nós o desenvolveram mais que outros.

Escultura de Michelangelo Buonarroti

“Com a sua visão, você me vê sentada em uma pedra, mas eu estou sentada sobre o corpo de meu ancestral. A Terra, seu corpo e meu corpo são idênticos”, disse uma mulher aborígene em entrevista à televisão. Para este povo, nada está separado, as estrelas e as moléculas não estão separadas de nossos sentimentos, desejos e imagens da consciência, o que hoje faz muito sentido do ponto de vista da ciência, já que a astronomia nos fez compreender que somos todos feitos do mesmo: da poeira das estrelas. A mesma matéria que formou as galáxias é a que nos formou, apenas somos uma composição diferente das mesmas substâncias. 

A visão de um mundo encantado não é uma ilusão ou a faculdade de loucos, é simplesmente outra maneira de perceber e compreender as coisas. Se pensarmos que os aborígenes, com esta forma de compreender a vida, viveram milhares de anos neste planeta mantendo seu equilíbrio vital e que nós, com a nossa visão ocidental materialista estamos acabando com seus recursos em muito menos tempo, colocando em risco toda a vida no planeta, inclusive a nossa própria, nos cabe no mínimo um questionamento: Será que a nossa visão está correta? 

Estamos vivendo uma amnésia coletiva, uma incapacidade de enxergar o navio no horizonte, como os índios na época do descobrimento. Deixamos de ver aquilo que deixamos de acreditar, assim como deixamos de ver, com o passar do tempo, aquilo que víamos quando crianças. Esquecemos quem somos e o que estamos fazendo aqui. E esse esquecimento é o que nos adoece, o que nos entristece. 

Ainda bem que temos os artistas e os poetas para nos lembrar que por trás das cortinas, há um mundo colorido e maravilhoso, que nos encanta porque nos faz lembrar da verdade que está dentro de nós, dormindo mas implorando para ser despertada.

"A importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós."
Manoel de Barros